233A, 720 Khalos ou um mergulho nas dores para se encontrar

Espetáculo "233A, 720 Khalos" com Valéria Pinheiro. Foto: Samuel Macedo

Texto: Emerson Ramon

 

No auge dos seus dos seus 66 anos de idade, Valéria Pinheiro, multiartista, toma conta do palco com o espetáculo solo, “233A, 720 Khalos”. Composto por monólogos e coreografias que exploram o seu corpo, canções populares, sapateado e trilha ao vivo, cria uma narrativa não linear, que faz Marrocos se confundir com Cariri. 

Abre com uma cena musicada da personagem, estabelecendo a atmosfera do espetáculo, meia luz, voz compassada, ritmo cantado, que transporta o público, para uma memória imaginária de um nordeste encantado, com repentes e fantasias mágicas.

O espetáculo surgiu no ano de 2016, a partir de uma pesquisa sobre Frida Kahlo, através do surrealismo, usando a obra do Dalí. Recebendo o convite do Instituto Pina Bausch, na Alemanha, para desenvolver seus estudos. Da Alemanha para Figueres, de Figueres para Cadaqués, ambos na Espanha, no pequeno museu do Dalí ela encontra um livro do André Breton, ponto de virada, para Marrakech em Marrocos, e Marrocos vira sertão. 

A introdução comunica boa parte do que Valéria busca nesta obra, esse paralelo entre África e Brasil, mas especificamente, Marrocos e Cariri. Como ela se encontrou no Deserto do Saara, na sua busca por Frida. Mergulhando nela mesma, nas suas memórias, dores e no seu luto, pela perda da mãe e do pai. 

Com pequenos bonecos de pano, ela faz comparações entre personagens marroquinos e caririenses. Figura paterna, mestres de Cultura, cangaceiros e instrumentos que lembram os sons de nossas bandas culturais. Rompendo com a linearidade e com as explicações, começa outra viagem. Agora pelas memórias, saudades, lembranças, sons e danças. Com coreografias de sapateado, tocando tambores e ecoando cantos, acompanhada pela trilha ao vivo no teclado, de Wesley Santana. 

Explorando as memórias, relembra a ocasião ao observar um cortejo pela janela, de correr a cavalo, um confronto armado em uma cadeira de balanço. Dando vazão a toda a imaginação, fazendo o público se enxergar nessas imagens de similaridades construídas durante toda a apresentação. Misturando a sua infância com a infância de quem assiste, criando lacunas para preencher com pequenas lembranças que temos dentro de nós. Trazendo de volta momentos esquecidos, espaço de imaginar junto a ela, de construir suas próprias cenas dentro de si. Você pode até não ter ido a Marrakech, pode até nem saber onde fica Marrakech, mas você consegue se conectar, com essa África-Cariri, que Valéria nos apresenta.

Ela foi atrás de Frida e se encontrou na imensidão do deserto e nos sons da África. Conseguindo igualmente transportar o público para se encontrar na apresentação e dentro de si. Todos os paralelos descritos através de suas cantigas, fazem rememorar passagens e personagens que carregamos conosco. O espetáculo tem essa magia de transformar o borrado da cor marrom que marca a terra do deserto, num universo de cores nas imaginações de quem ver. Mas o mais importante é que depois de tantas viagens, memórias, dores, ela não esqueceu de ser criança. 

 

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